A Inspiração Forjada Em Pele Preta
Justificativa:
Falar de resistência, força e coragem, é adentrar no histórico do povo negro pela perspectiva da realeza ancestral e ir de encontro à figura de AQUALTUNE, uma força motriz incontrolável na luta de seus ideais.
Um pássaro mítico que voa para frente, mas olhando sempre para o passado, nos inspira em contestar a memória, romper as barreiras e viajar na importância do significado de Sankofa, onde reconhecer os erros e as injustiças com o povo preto é construir um futuro de igualdades e oportunidades.
Este símbolo Adinkra em muito contribui para a narrativa que a Renascer de Jacarepaguá se propõe a exaltar na avenida no carnaval de 2025. É necessário que se reescreva a história diante da insistência imoral de invisibilidade, silenciamento e apagamento.
AQUALTUNE é, sem dúvida um dos principais nomes abolicionistas do nosso país, representando a força feminina negra, a luta por direitos e pela liberdade.
Perpassar o tempo é relembrar a trajetória da Princesa do Congo ainda puxando o fio da recordação assombrados pelo peso da escravidão, nos remetendo à cicatrizes dolorosas que ainda se perpetuam despertando a premissa que nos convida a reparar os equívocos de outrora e se reconectar com a ancestralidade, ressaltar a essência e reafirmar o poder existente na corrente sanguínea da mulher preta.
Que seja possível vislumbrar o soprar do vento espalhando a intensa neblina pairada nas narrativas contadas através dos livros, ocultando fatos que a sociedade ainda varre para baixo dos tapetes.
Alçaremos voo para desmistificar o ideal da heroína lendária, filha de mãe ancestral nascida em berço de lítio, cobalto, ouro e diamantes, que escolheu impulsionada pelo instinto guerreiro de seu povo a lutar na vida.
Que a guerreira forjada na dor das batalhas seja a inspiração, a conexão, o encorajamento e o afirmamento da força feminina preta de ontem, de hoje e até o futuro, que seja a essência capaz de potencializar vozes a ecoar em diferentes direções.
Sinopse:
Voar nas asas de Sankofa é folhear as páginas da história e pousar no berço real da humanidade onde tudo se inicia.
Na contramão de versos e verdades escondidas, a fantasia revela diante de meus olhos um portal de restauração das lembranças, fortalecendo laços e exaltando a linhagem ancestral que dentro de mim habita.
Nasci crioula, retinta, oriunda de ventre nobre, destemida, corajosa, de negritude bordada na pele, de sangue real pulsante na veia, de herança genética preta e orgulhosa das essências que me forjaram para a vida.
Essa sou eu, Aqualtune, a princesa negra; energia raiz de força voraz, nutrida de ancestralidade e valentia para protagonizar a própria narrativa.
É seguindo as trilhas do horizonte, que o vento me leva na viagem do tempo para recontar minha trajetória.
Lembro-me como se fosse ontem!
A cada alvorecer o soberano Reino do Congo manifestava-se como um fascinante jardim em meio à savana, explodindo em cores feito o sopro divino da criação.
Era um majestoso império de riquezas abundantes em ouro, diamantes, lítio, minério de ferro e marfim. Um solo viril de pluralidade de arte e cultura que crescera em meio a animais enigmáticos, exemplares de beleza e elegância herdada de sua matriz.
A opulência do reino era tanta que despertou a cobiça do mundo, a ganância dos portugueses no que era nosso se espalhava em minha terra como erva daninha, os conquistadores chegaram como se quisessem apenas estabelecer relações comerciais, mas foram se mostrando aos poucos.
Me vi a frente de um poderoso exército na luta contra o domínio da força portuguesa. Lutamos bravamente na célebre batalha de Ambuílla, mas… Fomos derrotados.
E como muitos irmãos Bakongos, fui lançada impiedosamente ao mar, feito um corpo negro em diáspora sem valor, sem perspectiva, sem dignidade, a ser exposta como mercadoria entregue a própria sorte!
A sensação era de ter sido sepultada viva em uma tumba flutuante, a cada balanço descompassado das águas de Olokum, as feridas de minha alma se tornavam cicatrizes, como se quisessem mostrar o quanto era capaz de suportar a luta que estava por vir.
Desembarquei aqui no Porto de Recife como realeza açoitada, distante de minhas raízes!
Trouxe comigo a grandeza do meu povo, carreguei cada memória vivida, as lembranças eram danças ritmadas em meu peito que insistiam em me alimentar de coragem e acalentar meu coração.
Mas quando dei por mim, e olhei ao longe, a terra mãe já não avistava mais e então a saudade me tomou por inteira!
Entrei em desespero, corri em direção ao mar como se quisesse ser abraçada, embalada, posta no colo e levada de volta ao seio materno, porém era em vão. Fui tomada não pelo medo, mas sim por não saber o que o destino havia me reservado.
Vendida, escravizada, feito reprodutora, violentada em todos os aspectos, desumanizada e consumida como um pedaço de carne.
Batizada a força, marcada a ferro, mesmo assim não sucumbi diante das atrocidades, não só por mim, mas também pelas mulheres negras que vieram antes e as que viriam depois de mim.
A esperança renasceu quando ouvi falar em Porto Calvo de um refúgio onde a liberdade já não era mais um sonho longínquo.
Os tambores ancestrais ressoavam na floresta da Serra da Barriga, alegrando realezas refugiadas que construíram um reino nas brenhas da mata.
O anseio pela liberdade me fez desbravar as trilhas ocultas bordadas de determinação e suor deixados por tantos, e quando me dei conta surpreendentemente Palmares surgiu como miragem diante de mim, um verdadeiro reduto de quilombolas guerreiros nesta África brasileira, uma forte nação guardiã dos que se fizeram livres de açoites e chibatas.
Abençoada seja a liberdade dos tantos irmãos de origem nobre que estas terras tanto regaram de lágrimas, e que fizeram desta Angola Janga meu reinado.
Lágrimas essas que hoje lavam a alma de consciência negra, e banham a negritude de orgulho de nossa eterna alforria.
E neste carnaval, na graça dos santos pretos o samba se faz congada para sair em procissão pela avenida, e me coroar rainha, e enaltecer enfim minhas herdeiras legítimas, as que carregam em seu íntimo a mesma força, garra e o espírito aguerrido da nobreza africana.
E diante de um insistente histórico de invisibilidade, silenciamento e opressão de raça e gênero, é que se faz necessário recontar minha jornada para que fique claro a essa sociedade machista e preconceituosa, que somos parte de uma árvore genealógica poderosa, e que faremos entender que cada uma de nós mulheres não nos curvaremos a quem ousar nos diminuir, pois ostentamos com orgulho a ascendência que nos empodera, nos enche de altivez e nos paramenta para confrontar o preconceito.
Honrosamente seremos celebradas, exaltadas e respeitadas por nossa persistência em resistir, lutar e existir… De ser mulher negra, que carrega o legado de Aqualtune e tantas outras heroínas que a história não mais esconderá.
É preciso reafirmar que quando uma mulher preta se movimenta ocupa o espaço, se espalha, pois sabe que pode ser o que quiser. Capaz de calar a voz da ideologia impregnada pelo preconceito e mostrar que o racismo e o machismo não mais farão do seu caminho ainda mais longo e doloroso.
Renascer é reconduzir todas as mulheres de pele e alma preta ao seu lugar, ao protagonismo.
Tem luta ainda, mas terão que nos respeitar!